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Minha relação com a Justiça do Trabalho é de amor. Dos seus 80 anos, tenho 27 dentro da instituição, mais da metade da minha vida. Fui do atendimento no balcão à magistratura e, quem sabe, ainda chego a desembargador nesses 13 anos que me faltam até a aposentadoria.
Não é por outro motivo que tenho dedicado parte das minhas reflexões acadêmicas a depurar a interpretação e a aplicação do Direito e do Processo do Trabalho a partir de decisões judiciais, suscitando o debate sobre as visões de mundo que passam pelo Poder Judiciário, auxiliando, dentro do meu entendimento, o fortalecimento da Justiça do Trabalho, já que a crítica acadêmica revela a possibilidade de diferentes posições, passando para a sociedade a tranquilidade de que um certo tipo de julgamento não necessariamente prevalecerá, que há esperança de vermos uma jurisprudência estável, íntegra e, principalmente, coerente, como determina o art. 926 do CPC.
Em outras palavras, decisões que nos chegam e que provocam uma imediata perplexidade, pelo entendimento firmado e por sua fundamentação, precisam ser depuradas analiticamente pela academia, no mínimo para ser possível compreender como um órgão jurisdicional pode interferir na vida do cidadão, condenando-o, quando à primeira vista o ordenamento jurídico não indicaria a conclusão do magistrado. Entender o raciocínio do órgão jurisdicional a partir da fundamentação de sua decisão é a forma de se tentar legitimar o exercício do poder que lhe foi democraticamente atribuído.
No caso desta semana, a 4ª Vara do Trabalho de Porto Alegre condenou a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos a pagar adicional de insalubridade pelo fato do empregado trabalhar “dentro de uma das agências da ré, com atendimento ao público e recebimento e postagens de cartas e produtos em geral”, como se vê dos autos da reclamação trabalhista 0020440-71.2020.5.04.004.
Sim, minha reação também foi essa. Insalubridade? Será possível? Bem, dediquei meu tempo para ler a decisão antes de qualquer consideração, mas logo de início percebi que não adiantaria muito buscar as razões do entendimento do órgão julgador, já que nas primeiras linhas pude notar a visão de mundo que sustenta a conclusão: a histórica luta de classes — só que, agora, realizada pelo Poder Judiciário, assumindo o magistrado a função que antes era do líder sindical. Está lá na decisão: “observo que a proteção dos direitos trabalhistas, mediante tutela estatal diferenciada, caracteriza-se historicamente como elemento de contenção da luta de classes que, se suprimido, provocará o renascer do confronto direto, disseminando o caos”.
Na ótica da decisão, portanto, cabe à magistratura assumir o papel que antes era realizado espontaneamente pela classe trabalhadora, atuando através do Poder Judiciário para a conquista do equilíbrio das forças entre capital e trabalho, promovendo a proteção dos direitos trabalhistas como missionários da justiça social, valendo até mesmo ignorar o ordenamento jurídico para impor a vitória na luta do bem contra o mal. Seriam os juízes do trabalho, assim, uma espécie de agentes infiltrados da classe trabalhadora dentro da estrutura estatal, recebendo vencimentos com recursos públicos, vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade salarial com o grande fim maior de servir a esta parcela da população.
Para tanto, basta construir uma narrativa que convença o cidadão que paga através dos tributos os vencimentos da magistratura, criando-se um fabuloso mundo paralelo ao modelo Amélie Poulin. Existe uma lei que possa ser obstáculo, como a Reforma Trabalhista? Simples, em alguns parágrafos fixa-se sua total inaplicabilidade, por ser formal e materialmente ilegítima, pois “na medida em que retiram direitos e impõem penalidades, em um raciocínio avesso à proteção, atraem a aplicação do art. 9º da CLT”. Logo, legislador, jamais será possível qualquer alteração legislativa que possa ser tida como afrontosa à proteção.
O fabuloso mundo criado é tão assustadoramente palpável, que se ignora o fato do Supremo Tribunal Federal já ter utilizado esta tal lei “ilegítima” ao reconhecer a constitucionalidade, por exemplo, do fim da contribuição compulsória aos sindicatos. Se tal dispositivo desta lei foi considerado constitucional pelo STF, como se pode conceber que a lei seria integralmente ilegítima? A verdade é que pouco importa a verdade, importa a narrativa, que não pode aceitar qualquer elemento que a desconstrua.
E dentro deste mundo onde tudo se acerta e tudo funciona, o trabalhador finalmente encontra a sonhada proteção, propiciada pelo agente estatal que está ali ao seu dispor. Fazer, portanto, um salto interpretativo para manipular regras técnicas a fim de criar uma vitória na luta de classes é apenas um detalhe que produz a sensação do dever cumprido, mais um dia em que o mal na Terra foi erradicado, onde se avançou na histórica reparação dos oprimidos, mais um caso que suprime a culpa pelo recebimento de salário pago pelo povo, pois, afinal, a atuação reverte justamente a seu favor.
Surge, então, um novo direito, a insalubridade em grau máximo pelo fato de se estar trabalhando e potencialmente em contato com outros seres humanos, que podem estar infectados pelo Sars-cov-2, com ou sem sintomas. Imbuído do espírito de fazer valer mais esta erradicação de desigualdades, cumpre agora buscar alguma argumentação que a justifique. Uma nova narrativa dentro da mesma ficção.
Consta da decisão: “o ingresso em qualquer ambiente com pessoas portadoras de doenças infectocontagiosas, independentemente de se encontrarem isoladas ou não, representa um potencial de risco de contágio condizente com a insalubridade em grau máximo. Isso porque o Anexo 14 da NR-15 refere o contato com ‘pacientes em isolamento por doenças infectocontagiosas, bem como objetos de seu uso, não previamente esterilizados’ não em razão do isolamento, mas justamente por tratar-se de portadores de doenças infectocontagiosas.”
Como visto, tudo é a narrativa, não necessariamente a verdade. O Anexo 14 objeto da decisão fixa a insalubridade, estritamente, pelo contato com pacientes em isolamento. Num passe de mágica, basta ignorar esta premissa para estender a todos os trabalhadores que estão em atividade com atendimento a público o novo direito à insalubridade em grau máximo. Há de se reconhecer a coerência na forma de interpretar o Direito: se uma lei inteira é descartada por ser ilegítima, que se dirá uma simples norma regulamentadora. Detalhes a serem sacrificados pelo bem maior. O fim justifica os meios.
Se já não houvesse elementos suficientes para perceber que o reclamante conseguiu ingressar na Ilha da Fantasia, realizando seus mais profundos desejos, a fabulosa narrativa continua ao fixar o pagamento do adicional de insalubridade sobre a remuneração, determinando o aumento salarial de 40% a ser suportado pelo empregador a partir da aplicação direta da Constituição em seu art. 7º, XXIII, que fixou tal direito como “adicional de remuneração”, ignorando por completo que o tema já foi objeto de decisão pelo STF quando suspendeu a Súmula 228 do TST, Súmula esta que havia fixado nova base de cálculo para a insalubridade (salário básico) após a edição da Súmula Vinculante 4, que impede a criação de nova base de cálculo pelo Poder Judiciário até que venha a regulamentação por lei acerca do adicional de insalubridade. Não, não se trata de desconhecimento, simplesmente este detalhe não cabe na narrativa. Melhor descartá-lo.
Para finalizar, uma gratuidade por simples declaração e honorários de advogado apenas a favor do empregado, já que, ora bolas, a Lei 13.467/17 (Reforma Trabalhista) é ilegítima, coroando, de forma coerente, a fabulosa narrativa que constitui a premissa da condenação do empregador.
A total desconexão entre a realidade criada pelo legislador e pelo Supremo Tribunal Federal, bem como a explícita atuação em prol da classe trabalhadora, seria algo sedutor não fosse sua adoção pelo Poder Judiciário, que deve ser o guardião do ordenamento jurídico, conforme o juramento realizado no dia da posse de cada novo magistrado: “Juro cumprir a Constituição e as leis do país”.
Um órgão jurisdicional não deveria fomentar uma ilusão de mundo paralelo onde tudo é possível, interferindo indevidamente na construção social onde cada membro de Poder deve exercer seu papel sempre focado em valores maiores, para manutenção da delicada democracia em que vivemos. O respeito aos demais Poderes da República, exercido através da autocontenção, é um reclame de preservação dos direitos fundamentais do cidadão. Da mesma forma que se pode criar uma narrativa favorável a uma classe hoje, amanhã simplesmente se pode adotar a narrativa oposta.
A imparcialidade, cânone maior da magistratura, deve impregnar a alma de cada magistrado. A responsabilidade ao se fazer uma intervenção pública na vida privada deve ser o valor que perpassa todas as decisões, focadas nas consequências impostas ao cidadão. Por exemplo, o precedente que se poderia extrair da decisão analisada, que graças a Deus não é vinculante, seria: todos os empregados que atendem público durante o período da pandemia devem receber adicional de insalubridade de 40% sobre valor da sua remuneração.
Em linguagem bem simples, quase todos os empregados conseguiriam 40% de “aumento” durante a pandemia do coronavírus, época em que as empresas necessitam de medidas emergenciais com recursos públicos para simplesmente sobreviverem. Novamente uma desconexão com a realidade em que vivemos. Precisamos urgentemente debater o consequencialismo das decisões judiciais, o magistrado não pode esquecer da sua responsabilidade com a intenção expressamente manifestada em seus comandos, mas também com as consequências não intencionais, quando previstas e não evitadas.
Atuar o magistrado como agente da luta de classes, criando direitos não previstos no ordenamento jurídico, não apenas é simplesmente equivocado, como fere a própria Constituição, pois ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. A continuarmos com decisões fantásticas estaremos fatalmente construindo um destino não tão fabuloso como a narrativa que lhe sustenta: o descumprimento pelo descrédito ou, simplesmente, a pura extinção da instituição. De alento, a sabedoria do legislador em ter consagrado o duplo grau de jurisdição. Há esperança de que o mundo real prevaleça.
Afinal de contas, não desejamos a primazia da realidade?
Dr. Otavio Torres Calvet é juiz do Trabalho no TRT-RJ e mestre e doutor em Direito pela PUC-SP.
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